CÂNTICO NEGRO
Há muuuuuitos anos atrás, quando comprava os livros da escola, mesmo antes de começarem as aulas, eu gostava de os folhear: ler os textos soltos, ver as imagens, principalmente dos livros de psicologia, filosofia e português (e fui eu p engenharia-tem tudo a ver). No meu livro de filosofia do 10º ano vinha este poema q abaixo transcrevi. Desde logo me apaixonei por ele. Eu queria ser independente, decidida, irreverente, saber o que queria como o sujeito retratado. O texto dava-me mesmo uma sensação de liberdade. Mas era tímida, sensaborona e deixava-me levar pela maré.
A escola p onde fui no 10º era nova p mim, antiga e linda, e com vários "recreios": o da frente para os "queques" (os q vestiam roupas de marca, mais giros, produzidos e que eram os mais in); o do meio para os q eram mais "normais", mais mesclados; e o de trás para os metaleiros (que vestiam roupa preta e gostavam de música da pesada). Mas não era uma imposição era mais uma tendência por partilha de gostos comuns, e não, não sou eu q sou preconceituosa e lhes atribui esta etiqueta: era assim que funcionava. Eu como não era nenhuma das categorias acima mencionada (não era in, nem gira e p roupa d marca nem havia guita; "normal" também não era, mas também não me vestia sempre só de preto e na altura não ouvia rock da pesada), e como na minha turma havia um pouco de todas, pude correr sempre os recreios todos.
Uma altura no recreio de trás (metaleiros) descobri escritos na parede os versos que mais gostava na parede (os q estão a negrito). E fiquei contente (havia alguém q gostava do mesmo q eu): mas, não, não me tornei metaleira.
Bem, mas a história acaba aqui e isto tudo só p vos deixar este lindo poema:
Cântico negro
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém
.— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio
BOM FIM de SEMANA
4 Comments:
Prendi-me na poesia e lembrei o vozeirão de Ary dos Santos!
Boa semana.... (passa lá pelo meu cantinho se quiseres conhecer alguns dos meus animais)...
Também me lembro desse poema dos meu tempos de liceu. E também me lembro dos betinhos e dos pesados, eh, eh. Como é que desde tão cedo somos rotulados e rotulamos os outros pela maneira de vestir e estar na vida.
Olés! Tb és engenheira? Bem me parecia q só podias ser boa rapariga!! :))
Tb gosto mto desse poema e a descrição q fazes dos recreios eram iguais cá na minha terra.
Uma beijoca!
li o poema e li muitas outras coisas no teu blog
fico sem falas...
há tempos vi da rua matar a pontapé um cachorro telefonei á Liga, à Gnr à Policia ninguém fez nada porque eu não tinha testemunhas.
O autor estava numa varanda e ainda me insultou qd falei com ele
e este é o país que temos e as mentalidades - muito há a fazer.
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